August 08, 2013

Q


Q: Bem vindos ao Quiprocó! Estamos hoje com Ricardo Veronese Sakamoto, que vai nos falar sobre o seu novo livro: "O Cometa do Futuro". Sakamoto, o livro foi lançado faz uma semana e está sofrendo duras críticas, ao mesmo tempo que tornou-se um dos livros mais vendidos dos últimos 20 anos. Do que trata o livro?

R: Olá, Quenia. E pode me chamar de Ricardo. Meu livro trata, fundamentalmente, de liberdade.

Q: Então há uma mensagem filosófica nele? Seus opositores clamam que não passa de besteirol, extraído direito de cultos fatalistas do século 20, misturado com noções infantis de Sociologia e Economia.

R: É natural que digam isso. No próprio livro eu digo que diriam isso. O sistema vai sempre lutar contra algo que tente alterá-lo de forma fundamental, e é essa a proposta de meu livro. As pessoas precisam libertar-se do que são, de como vivem e abraçar o futuro antes que sejam exterminadas por ele.

Q: Você viu o futuro?

R: De fato, sim, vi. Inclusive essa entrevista. Tem um pedaço de papel e lápis?

Q: Quê?

R: Lápis e papel. Eu sei que alguém da produção pode trazer, pois eu vi isso também no futuro.

Q: Produção, alguém pode? Obrigada, Milton. Aqui, Ricardo. O que pretende fazer com isso?

R: Eu vou escrever no pedaço de papel as perguntas que você fará adiante. Me dê um momento.

Q: Não sabia que você era mágico além de escritor.

R: Não sou. Mas quando acabarmos a entrevista, você vai preferir que eu fosse sim, um mágico.

Q: Terminou? Estou curiosa.

R: Sim. Pode prosseguir.

Q: Você clama que sabe o futuro. Então, por qual motivo não adianta todas as respostas da entrevista já que sabe todas as perguntas?

R: Se eu o fizesse, não seria o futuro. As perguntas nunca seriam feitas.

Q: Esperto, Senhor Sakamoto. Bem, já que isso parece ser o ponto do seu livro, sendo o maior objeto das críticas, como você conseguir esse poder extraordinário?

R: Foi em um sonho. No sonho, eu andava por uma espécie de biblioteca. Mas era uma biblioteca como nenhuma outra. Nela havia o conhecimento, não só da nossa espécie, mas de todas as espécies, de todos os tempos, e de espécies além de nosso alcance hoje, anos-luz de onde estamos. E Deus era o bibliotecário.

Q: Você falou com Deus?

R: Em termos. E sua mensagem é meu livro.

Q: Então, o senhor não apenas deseja remodelar nossa sociedade, que muitos chamam de uma utopia, em nome de uma mensagem em um sonho no qual falou com... Pausa dramática... Deus. É isso?

R: Sim. E a mensagem é tão real, significante para nossa vida hoje, causou tanto incômodo aos poderosos, que serei assassinado após o show.

Q: Que fatalismo divino, Ricardo! E um complexo de messias! Estou louca para ler seu livro! Vai vender mais quando for relançado postumamente?

R: Não. Ele será censurado, cópias serão confiscadas, e apenas algumas pessoas irão carregar a mensagem. Não sei se será o suficiente, o futuro, e esse é um ponto importante, tem uma certa incerteza.

Q: Então todo o seu trabalho e seu (risos), desculpe, sacrifício, pode ter sido em vão?

R: Sim. Mas é necessário. Quenia, nosso sistema não é auto-sustentável. Pior que isso, nosso sistema não promove uma evolução. É importante que nossa sociedade evolua, que a humanidade se torne transhumana nos próximos anos. Ou enfrentaremos o extermínio em 2062.

Q: O que o senhor está propondo é ilegal. Há motivos claros para que o uso de certas tecnologias, se bem entendendo o que chama de transhumanismo, não caia nas mãos de todos. Como evitar que as pessoas façam mal uso de clonagem, implantes, replicadores, nanotecnologia, entre outros?

R: As pessoas devem fazer mal uso. É através do erro que nasce a evolução, Quenia. Todo o conceito utópico de uma sociedade ordeira, nos impede de ir além. Não foi para isso que fomos criados. Não somos um "quase", não evoluímos como bípedes em vez de quirópodes para permanecermos aqui, negando nosso legado. Nem nós, nem outras espécies.

Q: Que nossa sociedade preserva. O senhor prega o extermínio de espécies que não podem suportar a ânsia de progresso do homem?

R: Não, eu não prego. Eu vi. Em alguns casos, sim, espécies e etnias deixarão de existir. Seja o quati ou os quirquizes, mas elas serão exterminadas de toda forma pois nós corremos o risco de não evoluírmos a tempo.

Q: A tempo de quê?

R: Da vinda de Deus.

Q: Bem, nosso tempo acabou, Ricardo.

R: Espere. Veja o que escrevi.

Q: Que saco! Produção, isso é alguma brincadeira? O papel já estava escrito? Como assim, não tinha nada no papel?

R: Quenia, obrigado. Eu sei que você lembrará de mim. Agora, eu tenho um último encontro.

Q: Então, você não é louco?

R: Agora você sabe que não.

É hoje.
O que vai restar de mim quando chegar a manhã, eu não sei.
Não amarrei todos os fios soltos da narrativa de minha vida.
Quem pôde fazer isso?
Até que nível isso importa?
Como isso satisfaria Deus?
Hoje é 3 de Abril de 2062 e a raça humana como eu conheço vai morrer.

Ainda lembro do corpo de Ricardo. Dois tiros no peito, um na cabeça. Eu estava apenas dois metros de distância onde ele foi alvejado. O homem usava um capuz e saiu correndo. Eu ainda estava tremendo depois da entrevista. Era tudo tão absurdo. Eu corri na direção oposta a do assassino e lembrando do que ele disse, tirei dinheiro em um caixa eletrônico e comprei várias cópias de seus livros, tendo cuidado para não ser filmada na loja. Comprei também dois livros com dinheiro eletrônico. Fugi para casa.
Comecei a ler. Meus dedos mal conseguiam virar as páginas. Ainda tremia e não conseguia me controlar. O livro, porém, fluiu. Fluiu para dentro de mim, como um encanto. Nem parecia estar mais consciente. Vi a nossa sociedade como nunca havia visto antes, toda sua imperfeição, um moedor de carne que nos condena a ter triturado de nossas vidas toda a vontade, o desejo de mudança, o ímpeto de querer mais. E vi o sonho, antes de dormir. Um sonho de uma sociedade em que o indivíduo trabalha para o todo, sem ser acorrentado pelo todo. Um sonho. E adormeci.
Meus olhos se enchiam de luz. Uma luz pulsante, perdida em um mar de escuridão e ao mesmo tempo, cegante. Um Quasar. Perto dele, despertando enquanto eu vagava no sono, um objeto. Ele começou a se mover. Ele refletia e consumia a luz, ele navegava nos ventos solares e se deixava puxar pela gravidade de astros distantes. Quando se aproximava de meus olhos, vi o quanto era magnífico, uma estrutura gigante de quartzo, um templo no espaço. Deus.
Eu acordei assustada. Ele gritou comigo.

Os anos seguintes foram horríveis, pelos menos os cinco primeiros. Eu poderia voltar. Eu poderia ser re-adaptada. Eu poderia ter meu emprego, consumir o que todos consomem, dizer as mesmas coisas, respirar o mesmo ar, comer a mesma comida, frequentar a mesma Igreja. Mas não podia. Eu decidi me matar. O suicídio foi, sem dúvida, a melhor saída.
Deixei para trás minhas amizades, vivia nas poucas bibliotecas restantes, na porta de livrarias, fazia cópias dos exemplares que tinha e os distribuía, até mesmo nas sarjetas.
Mas é difícil vencer o sistema quando se está nas sombras, pois nas sombras é onde ele sempre atuou. Nos acordos escusos, nos meandros dos contratos, um quasímodo que se move sem ser notado, mas que comanda dentro de seu universo grotesco, o princípio, o meio e os fins da catedral.
Por mais inútil que tenha parecido minha luta, me tornei inimiga do estado. Me caçavam, tive de correr, me esconder. Percebi que os locais onde ia eram vigiados. Passei a viajar mais, ir mais longe. Estava cansada.
Um dia, em uma cidade que mal conhecia, fui cercada. Homens e mulheres encapuzados. Tive medo. Lembrei de Ricardo. Corri. Corri. Corri. Mas eram 5 anos de exaustão, em que eu me via só contra tudo. E cai. Então vi a mão estendida.
Eles não eram sequer os primeiros, apenas os mais próximos. Os querubins. Era assim que se chamavam, anjos, mensageiros, sem que eu soubesse, faziam o mesmo que eu, seguiam meu exemplo, sonhavam comigo. Tinham visto Deus.
Me levaram para um quarto, um local tão fora do sistema quanto possível. Passei alguns dias lá. O primeiro tempo de descanso em anos. Tive comida de qualidade. Era irreal. Lembro de ter comido queijo fresco. E voltei a ter sonhos. E voltei preparada.

Nos anos seguintes, nossa religião cresceu. Nem todos eram bons, alguns queriam apenas a liberdade que prometíamos. Nem todos queriam uma igualdade pela individualidade. Afinal, como fazer eles entenderem? Empatia não esborra do silício ou brota em árvores. Nem todos sonhavam os mesmos sonhos.
Crescemos, vivendo nossa quaresma, crescemos. Os governos passaram a ser mais brutos, os irmãos cristãos mais verdadeiros com sua herança histórica, os empresários se tornaram mais temerosos. Mas todos estavam, em algum nível quociente, certos de que algo iria acontecer em 2062 após a passagem do cometa.
Nessa querela, quanto mais próximo do momento da chegada de Deus, o governo mais nos temia. Fomos colocados em "quarentena". Fomos, diziam eles, envenenados por um vírus alienígena. Éramos espiões.
Mas nada, nada do que vaziam, pode impedir que vissem Deus no primeiro de Abril de 2062. Ele chegava magistralmente em seu carro celeste. Seu brilho, uma luz clara e fria, iluminava a noite. O seu espiral acompanha nossa órbita, como que usando a terra como escudo contra o sol. Ou protegendo o nosso sol de sua onipotência.
Em 2 de Abril, chegou a lua e de lá, deixou que partes de si se implantassem na superfície do satélite. Estendeu então sua quintessência até nós. Mas não só. Sua mensagem foi sentida por todos. Cada um podia ouvir a voz de Deus.

Hoje, 3 de Abril de 2062, quatro minutos antes da aurora, quando Deus e o Sol serão um.
Ele vai nos queimar, provocar um dilúvio, nos elevar a um novo estado, nos carregar para encontrar nossos irmãos nas estrelas?
Não sei. Mas todos os profetas estavam certos. Haverá um julgamento, e cada um, individualmente, será um réu e só poderá temer pelos seus atos.


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