August 11, 2013

R


Ela olha para o relógio pela centésima vez. Odeia admitir, mas está nervosa. Nunca esteve tão insegura desde que deixou Roraima. Ela olha para a caixa, confere novamente os mapas das estrelas e procura a ritalina. Nandara enxuga testa, coloca a caixa na mochila e sem muita cerimônia, prossegue para dentro da mata.

Ele sente o cheiro dela. Acha risível como ela tenta esconder seus passos. Para ele, é tudo óbvio, não diferente de ruas em uma cidade, a floresta lhe apresenta caminhos, passagens. Lá está ela, em um rotundo, tendo de fazer a volta até achar novamente a trilha. Não sabe ainda bem o que fazer, essa é a verdade, e poderia considerar que apenas o fato dela estar aí, é uma vitória, mas se irrita com a amadora. Ele esperava mais. E sai, pulando de galho em galho, com o corpo nu, exceto pela mochila que está amarrada a suas costas e dentro dela, uma segunda caixa.

O rato olha por entre as folhas. Não vê ninguém. Mas espera. Olha para a rua estreita, conta até dez e corre. Mal sai do esconderijo, um braço darteia em sua direção. As garras na mão escamosa o pressionam, mais e mais, quebrando seus ossos enquanto se debate. Morre. A criatura recolhe, do corpo do enorme rato, uma caixa. Amarra ela em volta de deu braço esquerdo. De um cinto de pano, pega uma espécie de bússola e compara sua informação com as estrelas. Ele sabe para onde vão ambos, a rameira e o covarde. E segue, agora um rato gigante, para dentro da mata, em direção a rotunda.

A caixa vai se tornando mais pesada a medida que ela se enterra entre as árvores. Os galhos arranhando seus braços e os insetos a picam constantemente. O suor, que não seca, só aumenta o desconforto. Ela podia ter ignorado a caixa, não podia? Que importa as tradições de sua família? Maldita terapeuta, praticamente a convenceu a seguir uma herança que ela não queria. Voltar a Roraima, entrar na mata, carregando uma caixa para levar pro mato. Que mais ela esqueceu na lista de besteiras? Um tambor? Gritos a plenos pulmões para se "reconectar a natureza"? Para ela, a natureza e ela estavam se contando muito bem, especialmente quando pensava nos litros de sangue que os insetos lhe estavam chupando. Mas era só a terapeuta a causa de tudo? Não foi movida pelo sentido de urgência? Pelas instruções, tão detalhadas, específicas? Podia voltar ainda, lhe dizia uma voz em sua cabeça. Ela para, olha em volta. Não vê nada, claro. Escuta a floresta, mas não vê nada. Pensa na segurança de seu laboratório, nas pesquisas que abandonou para ir nessa viagem e dá um passo para trás. Ela ainda pode voltar. Mas sente o peso da caixa, que quebra o momento de reflexão. Um peso que lhe foi carregado com um propósito que, em seu íntimo, sente que não pode ser ignorado, e continua andando, mesmo com tantas dúvidas quanto insetos lhe fustigando.

Ele chega antes dela. Mas acha que ainda a escuta, menos de um quilômetro de onde está. Olha para a cabana que parece guardar o círculo, assim como a abóbada de árvores sobre ele. O velho está do lado de fora, tendo um revertério. Conhece pelo menos duas plantas que dariam um jeito, mas sabe que, se ele sabe, também sabe o velho. Deve ter seus motivos para fazer o que faz. Prefere não dizer nada e em um ponto fora da clareira que rodeia a construção, tira algumas roupas da mochila, se veste e aguarda a mulher.

O rato olha a cabana e enquanto o velho está la fora, entra para o esperar. O local é simples, um prédio circular como a rotunda. Se desvencilha da caixa e fica em cima dela. O velho entra, faz um cumprimento com a cabeça e se senta em uma cadeira no lado oposto da sala. Ele se assusta um pouco com o barulho que chega no lado de fora e se apavora também com o cheiro que não tinha sentido antes. O homem alto e esguio entra sem fazer mais som que o necessário. Olha pro velho, pro rato e senta no chão, colocando a caixa que carrega, na sua frente. A mulher, o rato percebe de longe. Ela cumpriu sua romaria e entra na cabana, até sorridente. Olha pro velho, pro homem, mas nada há de risonho quando olha o rato. Ela se volta para correr dali, gritando, e apenas a rasteira do velho a impede. Ela cai sem muita cerimônia no chão da cabana, coberto por folhas.

Sem rodeios, o velho começa a falar e dar instruções:
- A exilada, o integrado e o transfumado estão aqui. Abram e me mostram o conteúdo de suas caixas.
- Eu queria uma explicação antes.
O velho sorri, mas sem graça. Há um ar de ameaça em todos aqueles dentes perfeitos.
Começa a rapsódia. Da boca do velho, a canção toma forma, dos esguichos do rato, ela recebe um hipnótico ritmo, e da voz do homem, ela ganha força. No retalho sonoro, Dandara entende, intimamente, o porque, no relato da música, enxerga os medos na batida do coração dos homens, lê os tratos escondidos no som das árvores da floresta, tateia no som reverberante o entendimento que precisa para se instruir.
É tudo tão rápido e precisa ser. Ela agora sabe que não tem tempo e precisam impedir uma outra melodia.
- É difícil de acreditar.
- Eu sei, menina. Eu já calcei os seus sapatos. Agora, mostre o que tem na sua caixa.
Ela abre, e surpresa, vê dentro da caixa, um aparelho de GPS, baterias, instruções.
- Bom, bom. Transfumado, você.
O rato abre a caixa e revela uma flauta, mas talhada. Dandara de pergunta como o animal a talhou e tem certeza que não tem a menor vontade de levar o instrumento a boca.
- Muito bem. Sua vez, Maíra.
O homem abre a caixa e revela um cocar. A penas são longas, coloridas, parece se iluminar um pouco a noite. E Dandara tem certeza, não é de nenhum pássaro que tenha visto. E isso lhe amedronta.
O velho produz uma caixa dele mesmo, abre na frente dos outros três. Dentro, um ranho.
- Agora, vão até a rotunda. Até lá eu ainda posso lhes guiar.

Os quatro caminham até sob as árvores, que entortadas como galhos e amarradas por estranhos cipós, se dobram fechando a luz da luz para enxergar a rotunda. O círculo tem um círculo dentro de outro, um maior que o outro, em escala cada vez menor. Com a lanterna, Dandara observa círculos cada vez menores no, vão ficando pequenos até que ela não distingue mais um de outro e como foi possível fazer eles com tanta precisão.
- Criança, venha aqui.
Ela olha um pouco irritada com o tom condescendente do velho. Não sabe o que vai acontecer, mas a memória da música permanece e acha melhor obedecer, voltando para o lado dele e de Maíra e os mantendo entre ela e o rato. Ele sente algo de ridículo no temor que sente, ela não acha que irá atacá-la mas... Afinal, é um rato gigante.
Quando se junta a ele, o homem pega o ranho e fere um dos círculos. Algo como água negra ou petróleo, começa a sair do chão, que agora, também treme. Ela percebe que os círculos v]ao ficando mais fundos.
- Vá, mergulhe.
- Mergulhar, nisso?
Enquanto ela fala, vê o rato e Maíra entrando no negro viscoso, uma noite dentro da noite.
- Eu tenho medo.
- Nandara, eles precisam de você. Só você vai poder lhes trazer de volta. Agora vá, antes que os perca.
E Ela mergulha nas trevas.

O óleo pegajoso começa a cobrir, mas ela está agora resoluta. A mesma força de vontade estranha que a fez entrar no mato. Um ímpeto que quase se parte quando o negrume lhe cobre a boca, depois nariz e por fim os olhos. E tudo acaba, é como se estivesse morta um segundo.
E há uma sensação de ridículo quando percebe, enfim, que respira.
- Maíra?
O som volta, abafado e irreconhecível como sendo sua voz, num eco louco. Ela tenta acender a lanterna, mas não funciona.
Ela grita. É o rato, ela percebe. Está junto dela, enorme, com olhos que devem enxergar esse mundo com facilidade. Ela segura seu pelo, com nojo.
Ela lembra de usar o GPS e marca sua posição. Não sabe exatamente como isso pode lhe ajudar, mas sente que é necessário. Um impulso do próprio destino.
Na luz emitida pelo aparelho, vê outra mão junto da sua, a pele mais clara que a sua. É Maíra. Ele está com o dedo em riste, levantando a frente dos lábios. Ela desliga o GPS e, com a mão sobre o rato, eles vão para dentro do mundo.

O rato os guia até o princípio de uma escadaria, talhada na rocha. Os degraus são longos, fundos. Um local de gigantes. Nandara consegue enxergar o fundo, graças a uma luminosidade latente, mas que ela não consegue distinguir de onde surge. É como a escuridão fosse, em princípio, diminuída, mas ainda assim, não há luz. No fundo da escadaria, ela vê três arcos. Homem, mulher e rato, se ajudam a descer. No chão, ela percebe que cada arco tem um espelho. Mas não há metal ali. Ela toca em um, e percebe para maior espanto, que são espelhos d´água verticais.
- Eu estou mesmo aqui?
Sua voz aquece a câmara, que responde:
- Claro que sim, filha.
Assombrada com a voz familiar, Dandara de volta para um dos espelhos.
- Já fez suas tarefas?
- Qual delas, mãe?
- Da escola, Inha. Vem, vou te ajudar.
E sua mãe a leva para sala. O sol, lindo, ilumina o local. Na mesa, seu caderno, a borracha rosa, o lápis com desenhos doces.
- Olha aqui, linda.
A mãe aponta algo no livro.
Dandara vê enormes pássaros, sem asas. Eles parecem prestes a cantar para um globo.
- Temos de respeitar o mundo, Dandara. Não devemos interferir na natureza, meu bem. Deixe as coisas correrem seu curso. Vai fazer isso por sua mãe?
A menina olha para a mãe. Como negar, quando ainda tem memórias da mulher que a viu perder em um hospital frio, em uma terra distante. A voz da mãe, cálida em amor, sem esquentar o voz.
Então, ela escuta a música.
A mãe olha preocupada.
A menina escuta o som e procura de onde vem. Não está debaixo da meda, por detrás dos quadros. Ela vai par o banheiro em perseguição das notas. A Mãe, em seu encalço, começa a falar, mas a flauta suplanta a voz e não a deixa levantar-se e, segundo a segundo, momento a momento, guia Nandara, que se vê no banheiro. O som, ela percebe, vem do ralo. A mãe a segura pelo braço. Ela continuar a falar, mas a menina não a escuta, indo até o ralo e olhando para dentro.
E ela vê a si, mas bem mais velha, assim como Mairá e o rato.
E cai, sentada no chão, em frente ao espelho.

- Que foi isso?
E ela nota: Maíra também está confuso.
- Que houve?
- Pegaram vocês.
O rato respondeu. Mas não da boca de rato. Ela olha ele mudando, se transformando. Maíra reage com rapidez, puxando uma pequena faca e se lançando entre Dandara e a criatura-serpente.
A criatura sibila e sorri.
- Abaixe a arma, Maíra. Confia mais em ratos que em serpentes?
Dandara se mexe para o lado do homem. Toca em seu braço. Ele guarda a faca e conversa com a naja.
- O que houve com o rato?
- Ele está morto. Ele não representava o transfumado.
- E porque manteve o segredo até agora?
- O espelho conhecia o rato, mas não conhecia Nüwa.
O mundo treme. O chão parecia em falso por um momento e Dandara quase caiu.
- Dandara, se segure em mim e fique de olho no transfumado. Se ele virar mais alguma coisa, me avise.
- Eu sou eu e o mundo é mundo, mas respeito seu receio.
Maíra segue em frente, por dentro de um dos espelhos que se revelaram agora passagens. Dandara, segurando seu braço, segue entre ele Nüwa, como acolhe cada olhar seu com um longo, pontiagudo sorriso.

O túnel termina numa câmara. Nandara vê novamente os pássaros. Animais colossais, um parece uma arara, outro, um joão-de-barro. Nenhum deles tem asas. Do outro lado da rocha cavada, fumaça e animais. E para além da fumaça, homens. Ela olha atenta, tentando perceber o mundo além do véu de uma reacionalidade construída, buscando uma intersecção com o que vê e com o que é. Os homens passam pela névoa que surge do chão e se transformam em animais. Os transfumados. Olha trabalho realizado, como cada um deles, feras e gente, de mortificam em nome das feras. Caminhando por entre as penas e coletando parasitas, servindo para amortecer o chão sob suas garras, limpando e lustrando o local, acariciando suas cabeças.
Cada pássaro, maior que qualquer prédio que ela já tenha visto. E entre ele, o mundo. Um globo de fulgurante chama verde, que ilumina e aquece o local. Nele ela vê tudo, cada momento de sua vida, sob cada ângulo. E de todo mundo. De cada pessoa. De Maíra e de Nüwa, do velho, dos pássaros, de cada um dos escravos, de cada pessoa perdida no mundo sem saber que nunca irá se achar, pois lhe falta isso, o ponto crucial que lhes foi roubado e posto aqui, enterrado sob a floresta, para que cada um de nós possa um dia achar, fazendo para isso o sacrifício da jornada.
Dandara quer quebrar o globo e chora, pois sabe que não pode. Ela veio impedir isso. Ela está a serviço de quem impede que o sonho seja liberto, que cada um de nós veja através da bruma.
- Porquê?
Ela diz em voz alta. mas ela sabe. Ela percebe que a humanidade ainda não está pronta, e que assim, livres, sabe que quem enxerga é também enxergado, e há coisas além da cortina esperando esse banquete de atores ainda inaptos em seus papeis. Coisas como os pássaros, que cantam dentro da terra, e com sua voz, tentam apagar o fogo.

- Fiquem perto, mas atrás de mim.
Dizendo isso, Maíra veste o cocar. Ele é um pássaro. Tão grande quanto qualquer dos outros, belo, majestoso. Uma representação, ela sabe, e ignorado pelos monstros, que começam a sugar o ar da câmara, provocando os tremores que sentiram antes.
Nandara sente que quase quebra, os ossos quase racham e trinca os dentes em gesto defensivo.
No chão, Maíra ordena que as legiões parem de cuidar passam a maltratar. Com as poucas ferramentas que tem, cada um deles ataca os pássaros. No começo, ignoram. Mas então, começam a sangrar. Gritam um contra o outro, expulsando do outro animal, os serviçais transformados em assassino. Mas um dos pássaros se vira e com um grito agudo, torna um ar uma lança, que despedaça Maíra.
A confusão é imediata, assim como a reação. O reinado das bestas se aproxima, tentando cercar Nandara e Müwa.
Maíra se levanta. Não ele, um espectro. Ele ignora a criatura-serpente e olha para Nandara e então, para o cocar.
- Eu não sei o que fazer!
Ele não aceita a recusa, e seu olhar implora.
Os pássaros passam a buscar novamente o ar, ainda não derrotados. Nüwa olha para ela e se coloca entre Nandara e a multidão.
Pega no cocar, e sente, com a ponta dos dedos, um lento, carinhoso vibrar. E o coloca na cabeça.
Ela os escuta gritando. Cada um deles. Cada um dos que servem. Eles pedem, imploram instruções, e ela prossegue com o ataque.
Dessa vez, um dos pássaros tenta fazer o mesmo, mas simplesmente lhe falta fôlego. O fôlego acumulado, que demanda que alguém mergulhe até as profundezas e o gaste.
E desse alguém demanda vida.
Nandara cai gasta, exausta.
Desesperados, novamente libertos para cumprir a vontade dos demônios, a legião se ocupa em curar as feridas que abriu. Apenas um punhado se move para a mulher e a criatura.
Nüwa a ajuda a levantar-se e cospe veneno enquanto vocifera pragas. Os transfumados não se importam com as ofensas e continuam avançando. - Você precisa nos tirar daqui, mas temos também de levar Maíra.
- Nada resta dele!
- Faça o que eu digo, humana! Três entraram, três precisam sair!
E enojada, sentindo a proximidade de dezenas de olhos odiosos, Nandara ajuda Nüwa a recolher os pedaços do homem e colocar na mochila que ele carregava.
Os gritos, cada vez mais próximos, lhe forçavam e imprimiam ligeireza que não sabia que tinha, e logo estava escalando os degraus de novo. Por sobre o ombro ela ainda olhava a esfera. Ainda havia dúvida. Ainda queria, ela mesma, voltar e cantar até que ela de fragmentasse. Uma vontade irracional de liberdade.
E ela não esqueceu esse ímpeto, e se apegou ao sentimento até que chegaram de novo até onde, de acordo com o GPS, estava o ponto de partida.

- É aqui.
Ela diz para as sombras, que sibilam em resposta.
- Me ajude a montar ele.
- Montar?
- Sim, sim. o melhor que pudermos.
E a serpente e ela reconstroem o homem. Isso lhe parece inútil. Não há magia que o traga de volta. Maíra está morto e só.
- Isso é ridículo.
- É? O que você sabe? O que sabia? Não enxergou nada? Nada aprendeu, sobre limites e regras e deveres e até onde forçar a sua liberdade sem rebentar o mundo? Três entram, três saem. Sempre foi assim e sempre será, menina. O homem, a mulher e o animal entre eles. O que é uma maça, Nandara?
E os dois ficaram em silêncio, enquanto o mundo ia ficando mais claro, e os três, um deles, sem vida, viam o mundo de novo.

- Eu ainda estou velho e vivo. Vocês fizeram bem.
- Mas ele morreu.
- Todo mundo morre um dia, querida.
Na noite caótica, em que fora empurrada por tudo, inclusive por si mesma, ela sente o "querida" e seu carinho, com estranheza. - O senhor vai ficar bem?
- Vou, claro. Vá agora, Nandara.
- Pra onde? Onde vou depois disso?
- Viver. E quando quiser, retornar. Um dia, talvez, seja você nessa cabana, fazendo um esforço tremendo para parecer só um velho. Hoje, você salvou o mundo. Amanhça, quem sabe? Mas até lá, vá e viva.

E sem olhar para trás, para homens, mortos e serpentes, cansada, ainda surpresa e renovada, a heroína, foi.


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