Ele sua.
Quente, escura, úmida.
Descrição da sala, ou da linha de seus pensamentos?
Que importa? São intercambiáveis.
A tela o alimenta com sua luz suja, desigual.
O sexo é mecânico.
Frio, claro, seco.
Tem cheiro de ecrã.
Jorra sobre ele como falsa porra.
Mas ele louva o ato com sincero desapego.
Faz dias.
Os filmes mudam.
Sempre.
Texturas mil, sobre formas quase sempre iguais.
Animados, o ciclo automato pouco muda.
Faz dias.
Intercalado ao falso ardor, o pornô cotidiano toma o espaço.
A mulher está na cozinha.
Ela está comendo.
Lavando.
O sorriso feminino devora a câmera.
O contraste do comum despido ao plástico despudor, não lhe escapa.
E o excita.
Faz dias.
Pouco resta dele.
Mas sobram odores.
Ele apodrece no chão da sala.
Comida, na cozinha.
Roupas se decompõem lentas, sem atenção, esquecidas.
O corpo nu, emoldurado pelo sofá, alterna suados espasmos e cansados delírios.
Faz dias...
A baba azeda, uma mosca, uma batida na porta.
Seus olhos se abrem sem força.
A batida é agora mais forte.
- Já vou.
Grita em débil sussurro.
outra batida.
Exausto, veste uma bermuda próxima da mão e abre a porta.
O estranhamento é mútuo.
Preparado para bater, o outro homem desiste em choque.
O braço cai e pende, em franco desânimo.
- Paulo?
- Roberto? Betão?
O dono do apartamento cai, despertando com a água fria.
- Paulo, acorda! Você está bem?
Ele não quer responder. Mas bebe da água do chuveiro. Queria afogar-se.
-Paulo, porra! Reage!
Beto segura o amigo, maior que ele, um dia, foi maior que ambos.
- Homem, o que houve? Você está péssimo. Parece que alguma coisa morreu no teu apartamento.
- Foi?
- Foi, cara.
- Fui eu. Eu morri aqui.
- Paulo? Ei, Paulo, acorda! Paulo!
Paulo acorda.
E está sozinho.
Como companheiro só lhe resta o cheiro de cloro.
Como uma bruma invisível que recobre o apartamento antes fétido, o odor de eucalipto lhe parece mais amoral.
Acordado, ele volta então para o mundo em desalinho.
E anda para a sala, e lá, vê nos retratos, toda a incompletude.
O casal parece feliz.
Mas ele nota em cada retrato, cada foto, cada desenho que ele fizera de ambos, no carvão, um desencontro.
Esse lhe parecia pontuado então, pelo último bilhete que ela lhe deixara.
As palavras, ele preferia não ler.
Como último gesto, derradeiro movimento do fogão, deixou-o lamber em suas chamas, a carta fechada.
E lento, mas apaixonado, obcecado Paulo, se deixou consumir.
O resultado Beto viu.
O amigo, nem o mais próximo, nem o mais fiel, notou sua falta.
Sobre a mesa, lhe deixou comida, promessas de volta, pedidos de calma.
Paulo olha, lê, não come, apenas senta.
Ele não continua os gestos que fizera antes.
Ele foi despertado do transe.
Desejo amargo.
Foi ralo abaixo.
Cansado, faminto, sedento, espera.
Beto, como prometido, volta.
Ele desperta Paulo, o ajuda a sentar a mesa.
Pela primeira vez, Paulo nota, há um brilho de reconhecimento no homem.
A um esmaecer compartilhado, que acaba unindo ambos, nesse pequeno momento.
No apartamento morto.
- Paulo, eu nunca te falei isso. Mas sofri muito, muito mesmo. Rosa. Lembra dela?
- Não.
- Pois é, nem eu. Nenhum de meus amigos lembra dela. Nem a família dela. Nem ninguém. Nem mesmo o filho dela. Eu não sei se quero compartilhar isso com você, Paulo, não sei o que aconteceu com Rosa. Só soube que ela existiu por que ela existiu. Ela está nas fotos, em filmes, está no meu diário, SMS, email... Mas não na memória das pessoas. Rosa não é mais.
- E você acha que eu...
- Sim, Paulo, eu acho que você pode fazer o mesmo com Alice.
- E como você fez isso, Beto?
- Promete manter segredo?
- Prometo.
- Fiz com LeTHe.
- Leite?
- Não, LeTHe. Acho que químicos tem senso de humor. Só que, o que desenvolvemos a química não pode explicar por si só. Ninguém mais no laboratório queria tocar nisso, então tirei de lá. Ainda sobrou um pouco, Paulo. Tá aqui, ó...
E paulo tira do bolso uma caixa transparente e dentro dela, um fino tubo de ensaio e o coloca na mesa.
- É isso. Mas se você tomar... Não sei. Eu sei que eu não tava bem. Quase morri por conta de Rosa. Mas fica faltando algo, sabe? É como se, aquela pessoa estivesse sempre num... Ponto cego da memória. Bem, espero que você tome a melhor decisão possível, Paulo. Aqui tá pelo menos uma rota de saída, tá?
- Obrigado, Betão.
- Não, não me agradeça por isso. Por isso, não.
Roberto se levanta e sai do apartamento, sem se despedir.
Paulo olha o tubo de ensaio e não lhe parece nada excepcional.
Parece água.
Desconfia que seja um placebo contra sua depressão.
Paulo pega a caixa e senta no sofá.
Ele teme ligar a televisão e ligar o vídeo e olhar para ela.
Dela, pouco restou. Exceto essa compulsão de gastar-se, de não deixar que nada de si, sobre. De perder-se em uma agonia latente.
LeTHe não lhe parece tão má ideia.
Seria tão ruim, esquecer de alguém que te abandona, por mais que conheça teus sentimentos, que saiba de seus anseios, que poderia reconhecer-te entre vários?
Mas os detalhes de uma vida a dois que lhe impregna, esquecidos... O que irá lhe restar?
Ele não quer lhe fazer mal.
Por mais descartado, como lenço usado, ele não quer lhe fazer mal.
Não deseja que ela seja esquecida pelo mundo, como ela parece ter esquecido o amor dos dois.
Ele pega o tubo de ensaio. Olha para ele e é como água.
Como água de um rio qualquer, onde se pode deixar levar, como a água de um rio de memórias, que o banha e afaga, afoga.
E ele sabe.
Apesar do ordálio, não consegue negar aquilo que ele viveu.
Escuta então o metal ranger.
E mais uma vez, alimenta o fogão.
Voltando então pra sala, sentando no sofá, ligando a TV e enfim, se entregando.
Ao telejornal.
E a vida.
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