May 07, 2014
Repolhocracia
Para Adriana:
Dria, te desejo todos os repolhos do mundo. :)
Repolhocracia
João achava que tinha mudado. "Como assim?", ele se perguntava diante da dúvida que via estampada no rosto de 45 anos que via pela primeira vez. Ele, definitivamente, não era ele. Sentiu sim, uma ponta de ansiedade. Mas só uma pontinha. "Eu estou feliz", ele disse para o espelho do banheiro. A palavra, que designava um estado tão sublime, lhe parecia também uma novidade. Ele sorriu, lidando com seus pensamentos duplos, de um antigo e novo João.
Ele não estava só. Longe dali, alguns anos atrás, Li Wei foi o primeiro a se notar diferente. Não foi em um espelho, mas bem que podia ter sido. O chinês trabalhava numa fábrica, uma galpão gigantesco e havia dias que Li Wei não se sentia bem. Algo dentro dele não funcionava do jeito que devia. Do jeito antigo, de sempre. Do jeito que o levou a fábrica pela primeira vez, um galpão de homens e mulheres iguais, vestidos iguais, com ações iguais, responsáveis por montar um mundo de quem deseja ser diferente. E era só mais uma fábrica, como qualquer outra. Igual a tantas outras.
Li Wei constatou que suas mãos não eram mais as suas. Elas eram, mas não eram. "Ora, eu é que não sou mais Li Wei", ele se percebeu pensando. Terminou seu trabalho e foi para casa. Lá, Li Wei se encontrou com quem, até ontem, eram seus iguais. A família triste, que trabalha além do suportável. Não passavam fome, mas não tinham alcançado a riqueza que outros tinham. No jantar, os rostos dos iguais olhavam para Li Wei de forma diferente. Ele sorria, apreciando por uma primeira vez segunda, coisas que já fizera antes. Tomava, com gosto, a sopa de repolho.
Foi uma noite muito flatulenta. E em meio aos gases, microorganismos de Li Wei eram respiradas pelos irmãos que dividiam com ele o pequeno quarto. Entravam em seu corpos, multiplicando-se, devorando o que era o passado de cada um. Das vias respiratórias seguiam para o sangue, e logo estavam também nos nervos, e multiplicavam-se em seus intestinos. No cérebro, a nova colônia ia tomando conta das antigas ligações, reformando e substituindo o tecido, se integrando e mudando a si mesma no processo...
Wei, no dia seguinte, acordou ainda mais resoluto: sabia que não era quem sempre fora. Via as coisas de maneira diferente. Foi lendo, rumo ao trabalho. Queria entender seu novo eu, o que estava fazendo, quem era em relação ao mundo. Mas não estava apreensivo. Sorria. Estava feliz. Via melhor o mundo, percebia que algo havia de mudar, mas isso lhe dava satisfação.
Durante a semana, Li Wei fez o que sempre fazia. Mas de forma diferente. Continuava um bom operária, mas lia mais, percebia mais os outros, se preocupava mais com o mundo. E, toda noite, tomava a sopa de repolho ao jantar com a família e continuava a polinizar seus irmãos.
Ao fim da semana, eles também se estranharam, cada um percebendo que já não era o mesmo. E tiveram uma conversa estranha, mas nítida: sabiam, em seus íntimos, que eram uma nova família. Procuraram estudar o que havia ocorrido consigo. Descartaram mudanças mil, buscaram o insólito, mas desse, nada podiam provar e seguiram adiante, a solução estava na ciência, tinham certeza. Além de mudanças no ânimo, porém, a única mudança que notaram, era a apreciação maior por repolhos. Comiam no café da manhã, almoço e jantar. Carregavam nas marmitas para seus empregos, e as crianças da família, na escola, lanchavam repolhos.
Em menos de um mês, toda casa pertencia a novos habitantes. Não havia tristeza, apesar de sua realidade não haver mudado. Percebiam o mundo melhor e se percebiam também. Cada qual, vestia o sapato do outro melhor e lhes sentia o calo alheio. Olhavam o mundo de outra forma. E, sem perceber foram, lentamente, se espalhando.
Li Wei transferiu para os colegas da fábrica os microorganismos. O local era isolado, feito para a confecção de peças de informática. Mas a despeito de todos os filtros, os gases que entravam lá, eram fabricados pelo próprio Li Wei. Em menos de um ano, todos da fábrica eram uma nova família e se tratavam repolhosamente, sem distinção.
A pequena cidade na China foi tomada em menos de dois anos. Lá, não havia mais crime ou fome, todos trabalhavam igualmente e faziam mutirões para alimentar, educar e vestir a todos. O lazer era igualmente apreciado, sempre havendo companhia para os que escolhiam não estar só. A privacidade existia, mas poucos faziam uso dela. Não havia vergonha entre os seres da mesma espécie. Nem ciúme, inveja, ganância.
Logo o governo central mandou investigadores. Afinal, alguém devia estar falsificando os dados. Mas os fiscais voltavam sem nada contra a cidade. Felizes, contavam as boas novas entre mordiscadas em repolhos: a pequena cidade devia seguir como um modelo para toda a China, lá não havia violência ou desigualdade! Os fiscais foram presos e novos fiscais foram enviados. Mas já era tarde. A repolhoação do país já andava em vento e popa.
No ocidente, começaram a vazar notícias, logo desmentidas, sobre o hábito novo, que os jovens chineses adquiriram. No início, se falava em solidão como motivo dos jovens andarem com repolhos. Havia brincadeiras maldosas, que diziam que chineses haviam comido todos os cães e só sobraram as hortaliças. Não sabiam eles que era uma forma do novo grupo de identificar em público sem chamar atenção do governo.
E logo, toda a China se tornou diferente. primeiro, tentaram mudar o mercado mundial para melhor. Logo depois, houve uma abertura política. Menos de quatro anos após Li Wei perceber que havia mudado, a China dissolveu as instituições de poder. Houve caos. Não havia mais China. Com quem o presidente de outras nações, iriam negociar, pedir, brigar? Forças da ONU foram enviadas temendo algum golpe. Não havia nada disso. Havia paz. A única coisa que os soldados trouxeram de volta para seus países, foram repolhos.
A Repolho-Mania estava em alta. logo, se tornou difícil reconhecer os repolhanos dos demais: humanos também andavam com repolhos, sonhando, imaginando, um mundo sem países, sem divisões, em que todos se respeitavam.
Nem sempre a transição foi pacífica. Nem todos os governos, empresas, classes, categorias e ideologias, aceitavam que, em algum lugar do mundo, mais de um quinto da população mundial vivesse em paz. "Que horror!", eles diziam, "eles voltaram a ser comunistas!", bradavam. Estudiosos apontavam que não era bem o caso, mas a xenofobia, quase que incipiente nas culturas humanas, vociferava diante do extermínio. No entanto, a condição transhumana que se apresentava era irredutível em seu avanço. Em menos de 10 anos, atravessou o mundo.
João, no Recife, com barba por fazer, no dia de seu aniversário, olhou para si no espelho, mais uma vez. Se achou lindo. Se achou lindo como pessoa. Achou lindo o mundo que o cercava. Pensou nos amigos, e decidiu que no seu aniversário, ele daria presentes também. Foi pra sala, desligou a televisão pela última vez, pegou um livro para ler e o colocou no bolso. Decidiu não ir de carro e nunca mais o ligou. Seu vizinho, que torcia para outro time, lhe jogou uma dessas ofensas corriqueiras, que ele respondeu apenas com um sorriso desinteressado. Sabia que não veria mais o futebol com os mesmos olhos. E no caminho para o trabalho, comprou um repolho para lanchar e sentiu-se um pouco triste com tudo, apesar de feliz. Afinal, ele olhava para os outros e via, entre tantas faces bonitas, um animal em extinção, incapaz de evoluir, um prisioneiro do tempo e de ideologias mortas. E depois, sorriu de novo enquanto pagava o ônibus, cedia lugar, agradecia ao motorista, dava bom dia ao zelador e desejava uma ótima semana aos colegas de trabalho. Era um novo dia e ele não era mais ele. Então, se desejou feliz aniversário e continuou, para todo sempre, repolhosamente, feliz.
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